terça-feira, 27 de setembro de 2011

Tudo o que passou, passou. E o que sobrou? A distância e não-resposta do outro, que agora se esconde entre seus próprios cachos negros que um dia vi molhar na madrugada, e vi secar entre a chama que bailava enquanto tudo o que senti foi amor. Amor pequeno, amor suado, amor que não se ama. Paixão, que deveria ter sido passageira. Para um já passou para outro tem passado sem passar. E o que sobrou? Coisas que não deveriam sobrar.

Escrito dia 28 de junho de 2011 para alguém.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Um se. Um si.

Tinha cabelos rebeldes.

Mordia o canto direito do lábio inferior deixando à mostra uma fileira de dentes. O molar esquerdo tinha uma pontinha quebrada, herança dos fingimentos pueris: voava num balanço ou mergulhava em uma pocinha d’água.
Nos tempos em que você ainda emitia uma luz desregulada e amarela como ouro roubado. Meu ouro, certamente.

Como podiam seus cabelos ser mais rebeldes que eu inteiro? Mesmo quando chacoalhava meu corpo daquele jeito que você gostava, eu continuava pequeno perto dos longos fios que se enrolavam, moldados propriamente para meus dedos nem tão longos assim.

E íamos, íamos embora como se fosse fácil comprar um sonho. Na Alemanha vimos o gelo derreter, e na França comemos carne mesmo que você não gostasse dessa indústria. Em Londres me joguei do Big Ben só para te provar que eu era seu. Você riu e falou que era pouco. Você sempre queria mais, você sempre queria o Everest. E eu fui, de olhos fechados, enquanto você dormia, já que meu orgulho não deixaria que tal fato fosse gravado na sua memória tão esquecida.

Anos antes, você poderia derreter a neve. Quando te conheci, você era quase um sol. Um pouco mais que isso... Um som meio destonado, uma estrela brilhante demais, que acabava por cegar qualquer um que te visse. E você sorria, como quem não liga, e dizia para si mesmo que era a nota mais bonita que poderia haver. Ah, mas um sol sustenido? Você era estranho, era mais do que o necessário, sobrava. Tinha cabelos penteados demais, longos demais, e um sorriso irônico demais.

Aí se despiu desse calor que me fazia suar. Lá. Lá. Lá.

E enfiava suas mãos finas em luvas grossas, gordinhas assim. Jogava o cabelo para frente para não ter frio nas orelhas e sorria enquanto mordia os lábios (como conseguia?). Mudou tanto num semitom. E aí sentava do meu lado, em cima de mim, e colocava as pernas por cima das minhas. E ficava exatamente sete segundos em silêncio, só respirando minhas palavras, antes de apontar para um cortezinho enfeitado por sangue, pequeno. Fazia biquinho e dizia:

― Cuide, amor, que dói.

E eu sorria por dentro, sem por um momento tirar a expressão de contrariado do rosto. Tirava de ti o sangue com o dedo indicador e depois me colava em você com um band-aid exageradamente infantil.

― Super Homem? ―Você torcia os lábios e os olhos ao mesmo tempo. ― Você sabe que eu gosto mais do Homem Aranha!

Eu novamente assumia o papel de ranzinzo. Dizia que querendo ou não, você era um super homem, e não uma aranha dessas feias que a gente mata com o chinelo. Você ficava sem entender, refletia sobre os prós e contras de saber voar, ser intocável e pegar uma bala no ar. Você ainda preferia soltar teia, tenho certeza que era assim. Algum dia você vai ver o quanto que é bom ter visão de raio laser.

E nem com esses olhos privilegiados entrava na sua cabeça que seu som é o mais bonito do piano.
Depois você fazia café e tomava sozinho, aos goles, aos risos. Sabia que eu não gostava nem do cheiro, mesmo assim me oferecia. Perguntava aonde iríamos amanhã, querendo que eu dissesse que seria à Rússia. Eu falava outro nome, só para revidar o golpe do café. Você sorria mesmo assim e ia dormir. E adormecia! Depois de tomar café. Sempre assim. Com os cabelos em cima do nariz.

Eu sentava do seu lado, acendia a luz (você nunca acordava) e lia seu diário, procurando alguma evidência da minha presença na sua vida. Você narrava com perfeição nossas expedições a tantos países que eu nunca tinha imaginado ir (e nunca fui). E sempre tinha um pronome masculino que equivalia ao meu nome, embora eu nunca achasse.

Mas no rodapé, lá estava eu: “Ele continua cuidando de mim quando eu caio, e ainda sorri sem motivos só pra me fazer sorrir também”. Sempre algo nesse gênero. E eu fechava os narizes e olhos e ouvidos e coração e tudo e lembrava claramente da sua perna na minha e sua voz contra a minha, me dizendo que doía.

E não é? Cuide (desse) amor, que dói. Dói de apertar, de afogar, de arrancar fora o que eu conhecia de mim. Dói de acordar de manhã e ver que um dia você não vai estar aqui, e sim fazendo faculdade na Iugoslávia só para me contrariar, porque eu não lhe levei para lá. E por mais que a agonia seja tanta, eu não quero que depois de você, venha um senão. Um se. Um si.

sábado, 24 de setembro de 2011

Para A.

Daquela mesma sala, num sábado qualquer.

Querido, caro, amado (ou qualquer adjetivo que você prefira) A.,

Escrevo-te, mas entenda que não é por sentir tua falta ou por vontades proibidas de te ter — não mais. Rabisco-te algumas sentenças pois não proso há tempos — como se é perceptível pelo vocábulo querendo precipitar e escapar de mim. Esta ausência de fluxo com as palavras talvez se dê porque minha parte poeta destaca-se mais, ultimamente. As imagens gritam e escapam dessa caixa de som cá do meu ladinho, vêm e cospem em mim, que escolha eu tenho? A., você é o único capaz de me entender.

De qualquer forma, hoje é sábado, e, mais importante ainda!, hoje é dia de prosa.

Escrevo-te porque hoje a porta bateu sozinha e eu não pude interpretar isso como qualquer coisa a não ser vento. E nem se atreva a dizer que foi algum fator externo que atrapalhou o meu entendimento desse infortúnio! Foi uma brisa ingrata que a mexeu, é a única coisa plausível.

Vê o quão longe isso foi, A.?

Veja bem se está me entendendo: o vento fez a porta bater. Há nesse mundo coisa mais absurda que isso que lhe conto, com os dedos doídos? A. — me perdoe também pela falta de vocativo melhor, mas “querido” ou “amor” me remete a tempos antigos em quais não resido mais, e muito menos você —, este tipo de coisa não existe. Há de ser minha cabeça pregando peças em mim! Há de ser...

A., talvez você careça mesmo de me levar a algum lugar onde possam me consertar. Você dizia que seus hábitos tinham a cura para os meus tão maus costumes. E, apesar de eu nunca ter tido oportunidade de visualizar isso com certeza — nunca conheci sua rotina muito bem—, creio que valha a chance. Você não percebe a coisa pequena, cortante e quebradiça que me tornei? Droga, A., virei poesia!

No passo que estou, não conseguirei expor a decadência e o disparate que isso é. Imagine-se em uma jaula em cima de uma árvore, essa, por sua vez, em cima de uma montanha e mais!, há também um mar pelas redondezas. É mais ou menos o quão perdido um sujeito se encontra quando vira poesia.

Eu sei, A., que você não tem a capacidade ou a vontade de compreender tal sentimento de perda. Você sempre dedicou à poesia seus melhores sorrisos, os mais naturais. E quiçá haja justiça nisso — eu não acho que tocar em mim, na distância segura, seja ruim. Porém peço sua atenção: ter-me por dentro não traz nada de agradável. Principalmente no estado que estou, vê? Poesia há de ser externo e extremo, há de ser o fator irredutível que fecha as portas com brutalidade, poesia é o que eu peço ao garçom como acompanhamento do uísque e também pode chegar a ser o nome do pior livro que eu li — que ultraje ter o comprado! Essa coisa tão admirada por poetas tem a obrigação de estar atrás de cada um desses fatos, só que, ao adentrar em mim, ela sumiu de tudo para exibir um certificado de posse.

Mais ou menos o que aconteceu com você, A., naqueles amores remotos que tínhamos.

Mesmo que seu apreço pela poesia seja notável, imploro-lhe para não rir do meu desespero. Creio que, no fundo do seu ser (ou existir), você me entenda. É uma obrigação minha acreditar nisso, vê?

Tento observar no meu copo de coca-cola o reflexo da minha vida com poesia. Agora percebo porque essa danada vive escondendo-se de quem mais quer seu bem! Não a julgue mal, estar sob sua pele não é somente desastroso como cansativo. Compreendo agora que ela precise de uns momentos a só, refletindo no porquê de ser tão feia e codificada assim. Engraçado isso da (minha) compreensão, muitas vezes, só vir após a posse.

(Um pequeno parêntesis: espero que minha letra, a esse ponto, ainda seja digna e capaz de ser compreendida. Você que me conhece deve perceber que, desde que comecei a explicar-lhe meu odioso estado, ela vem se perdendo e borrando de jeitos, talvez, incompreensíveis. Porém, creio também que você que me conhece tão nu e puramente assim, entender-me-ia até sem a letra. É por isso que há a necessidade de ser você, A.!)

Se existe o meu direito de pular de um assunto ao outro, farei isto agora: A., sinto lhe informar, mas estou apaixonado e não é por você mais, embora meu afeto por sua pessoa ainda seja grande e pastoso o suficiente para alagar nossa casa e molhar minhas calças até o joelho.

Ando sendo possuído pelos ácidos de uma paixão extremamente peculiar pela Vida.

Vá! Vá adiante e ria de mim, A. Dou-lhe o direito de gozar de mim, pois sei que é justificado. Logo eu, logo eu, tinha que ser eu?, que discursava com direito a fervor característico e gestos entusiasmados (que irônico), dizendo que de nada valia esse plano em qual vivemos, eu que sabia bem ressaltar os contras de estar vivo, os prós do sono eterno e da falta de crenças. Eu que acordava todos os dias sem ao menos um despertador ou um motivo para acordar. E agora corro atrás das coisas pequenas que berram, rasgando as pregas vocais, “eu estou vivo! estou vivo! sou a vida!”.

É que me ocorreu que eu admiro ter um leque, dois leques, três leques de possibilidades. Andei dando-me um pouco de atenção e vi que escuto música apenas com o fone esquerdo. Reservo o ouvido direito às peripécias da vida, às idéias que vêm com(o) o vento... Eu quero tudo ao mesmo tempo.

Eu preciso saber todas as línguas e beijar-lhe a cada segundo. Eu necessito da sua companhia às terças-feiras e sinto falta das barrinhas de cereal sabor morango. Eu preciso de tudo, tudo, tudo. E, apesar dessa palavra que ecoa tão alto em qualquer lugar poder ser sinônimo áspero de “nada”, eu percebi que tem algo que valha tudo que é indescritível.

Os seus cabelos encaracolados, os seus cabelos por ora curtos. Os seus lábios arroxeados de frio quando você insistia que suportaria neve à sua pele nua e alva. Os seus olhos tão profundamente irritantes. O jeito com que você tira o gás dos refrigerantes e como me repreende por fumar após roubar um cigarro do meu maço. Seu sorriso número treze — aquele de satisfação antes de regar as plantas —, suas unhas sempre lascadas. Seu tão estranho e variado gosto musical e literário. O riso que dava após ganhar as apostas que fazíamos de quem leria o mesmo livro mais rápido, esse riso tão debochado — eu sei que você mudava meu marcador de páginas para capítulos antes só para obter a vitória. O modo com que você torce o pulso para fazer os acordes mais simples no violão e o sorriso número sete — o que você dava quando, toda manhoso, pedia-me para lhe fazer uma massagem.

A vida merece tudo isso. É por isso que me jogo de joelhos a ela.

Sugiro sem ciúme algum para que você se apaixone pela vida também, A., pois algo me diz que, sinceramente, ela também nutre paixões por você. Formaríamos um triângulo amoroso bonito, e eu ficaria sozinho como é usual (quem manda ser poesia!). Você e a vida, um sobre a outra, se enroscando, se amando. Visualizo essa imagem com um suspiro. Você tem esse costume de me roubar os amantes, mas não há problema nenhum. Sei admirar um belo quadro, embora o pintor entre nós seja você.

E olhe! No decorrer dessa carta, deixei de ser poesia! Perceba, que, num dos pontos gordos, vomitei-a para fora de mim. Muito obrigada, A., eu sabia que você me entenderia. Tinha que ser você mesmo!

Preciso lhe confessar uma coisa... Creio que minha mentira seja perceptível: tenho ciúmes sim. Apesar do meu (a)caso com o senhorito ter acabado faz um tempo, não admito mais que roube-me a vida desse jeito. Muito menos a Vida. Todos os meus amantes escolhidos a esmo foram seqüestrados por você, A.! E não acho isso muito justo. Porém, quem sou eu para falar de justiça? Um ex-poesia, ex-prosa... Diga-me: quem sou? Você há de saber, pois embora eu não tenha a mínima idéia de como descrever seus encantos, sei muito bem quem você é. Uma letra, uma letra caprichosa, cheia de voltinhas e toda redondinha, magrinha, fraquinha. Minha-inha.

Por mais que eu não lhe ame mais, você eternamente será meu, pois reflete todos meus próximos queridos. E, como supracitado, por ser meu, foge da realidade que me cerca. E isso é imutável, apesar dos nossos lamentos chorosos. Você, A., consegue estar presente em tudo ao meu redor, tão intocável como insistiu em ser. Aposto que se eu pedir aos meus pais uma foto do meu aniversário de cinco anos, você fará-se presente, olhando-me com ternura ou roubando um brigadeiro antes da hora do Parabéns.

Bem típico seu.

Então, embora não seja de meu feitio, terminarei isto aqui com um pedido: responda-me. Responda-me sem palavras que dessas eu já estou cheio. Almoço, janto e ainda tenho-as na sobremesa. Por mais que não seja certo, quero sua resposta na forma de beijo. Um último e perverso beijo, seguido do sorriso número treze e daquela música que você me ensinou a tocar no violão, com direito a floreio de pulso no acorde de lá.

E depois vá, vá produzir amor com a Vida que é de seu direito. Vá, por favor.

Só peço que se mantenha perto o suficiente para que eu posso mandar-lhe essas cartas pouco conclusivas. É preciso que o destinatário da minha Vida seja um “A.” grande e gordo. Com ponto e tudo!

Nos vemos em breve, então? Ainda não desisti do meu último beijo.

Com os dedos doídos e um sorriso (número dezessete, se você quiser precisão),

Acho que não preciso assinar isso.